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O liberalismo teológico e a pregação

por Nelson Galvão |



A modernidade começou a partir da Guerra dos 30 anos (1618-1648). Este evento incitou a mente europeia dos sécs. XVII e XVIII ao questionamento se vale a pena matar e morrer por dogmas.


Com essa reflexão, duas opções se abriram para os pensadores que queriam continuar cristãos, mas eram influenciados pela nova mentalidade: criar novas formas de cristianismo ou permanecer nas igrejas históricas, reinterpretando as doutrinas históricas clássicas. A segunda opção foi adotada pelos teólogos liberais.


O Liberalismo Teológico é uma corrente teológica que nasceu na Alemanha, no início do séc. XVIII. Esta corrente teológica tem como premissa principal a negação da inspiração, suficiência, autoridade e inerrância das Escrituras.


A palavra “liberal” expressa a ênfase no direito de definir os termos da fé sem ser constrangido por nenhuma autoridade externa, seja esta autoridade a Igreja, ou mesmo as Escrituras.


O objetivo do liberalismo era transformar o cristianismo à luz da ciência, da filosofia e da erudição bíblica modernas, tornando-o atraente e relevante para as novas gerações. Sendo assim, os liberais interagiram com uma cosmovisão (a modernidade) racionalista que perdurou do séc. XVII até meados do séc. XX. Essa fase abrangeu o iluminismo e seus efeitos posteriores.


Os temas básicos da modernidade abraçados pelos teólogos liberais foram: a supremacia da razão, a uniformidade da natureza e o progresso inevitável da humanidade. Essa ênfase antropológica dava à religião o simples papel de educadora moral do ser humano.


Os precursores


O 1º momento do racionalismo do séc. XVIII procurou preservar a autoridade da Revelação Bíblica. Nenhum filósofo, fiel à filosofia e ao sadio exercício da razão, poderia colocar seriamente em dúvida as doutrinas fundamentais da fé cristã.


Agora, para provar as doutrinas fundamentais da fé cristã, alguns recorreram à filosofia, ou à filologia, ou à história[1].


Influenciados pelo iluminismo do séc. XVIII, pensadores como Leibniz e Johann Ernesti intentaram acomodar o estudo das Escrituras aos métodos de estudo de sua época (Qualquer semelhança à nossa época não é mera coincidência!). Leibniz recorreu à filosofia. Procurou harmonizar sistematicamente a filosofia e a teologia. Em seu livro “Teodiceia”, Leibniz utilizou-se dos ensinos e técnicas de ambas as disciplinas para justificar a conduta de Deus em relação ao homem e ao mundo.


Johann Ernesti, em sua obra sobre a interpretação do Novo Testamento, “Institutio Interpretis Novi Testamenti”, sustentou que a Bíblia deve ser interpretada da mesma maneira como são interpretados os outros livros da antiguidade clássica (julgamento textual, histórico e filologicamente). Com isso, esperava provar que a Bíblia é absolutamente plausível. Entretanto, o efeito foi contrário. O emprego da filosofia, da filologia e da história, ao invés de fornecer argumentos em favor da revelação cristã, fez aflorar questões que contestavam sua validade. É exatamente o que denunciou John Gresham Machen:


A tentativa liberal de reconciliar o Cristianismo com a ciência moderna renunciou a tudo o que é peculiar ao Cristianismo, deixando somente aquele tipo indefinido de aspiração religiosa já presente no mundo antes de o Cristianismo entrar em cena. Na tentativa de remover do Cristianismo tudo o que poderia ser questionado pela ciência, subornando o inimigo com as concessões que ele mais desejava, o apologista abandonou aquilo que, no começo, estava defendendo.[2]

Francis Schaeffer notou a mesma coisa que Machen:


Desde o momento em que a teologia se tornou naturalista, sua tendência tem sido simplesmente seguir a curva do naturalismo secular. Na verdade, não diz nada de diferente do consenso ao seu redor. Qualquer que seja o consenso não teológico de seu ambiente, o liberalismo teológico se conforma a ele. Se traçássemos um gráfico mostrando, em vermelho, a curva referente às mudanças do consenso naturalista secular e, em verde, a curva referente aos ensinamentos da teologia liberal, encontraríamos curvas praticamente idênticas e veríamos que o liberalismo teológico acompanha o naturalismo secular com alguns anos de atraso, usando termos religiosos em lugar dos seculares. A teologia liberal emprega uma terminologia diferente e, no entanto, diz a mesma coisa pouco tempo depois. Tem uma perspectiva naturalista completamente oposto à do cristianismo histórico e à da Bíblia[3].

A alta-crítica


Com os pressupostos iluministas surgiram os precursores da alta-crítica. Semler (1725-1791) foi o fundador do criticismo histórico da Bíblia. Para ele (1) o cânon é apenas uma coleção de escritos recebidos pela Igreja; (2) a Palavra de Deus e as Sagradas Escrituras não são a mesma coisa; (3) a origem das Escrituras não é completamente divina, como se supostamente poderia se empreender dos “erros” científicos, históricos e geográficos. Para Semler ainda, existiriam discrepâncias entre o AT e o NT; além do que os ensinamentos da Bíblia deveriam ser considerados apenas moralmente.


Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) escreveu “Das intenções de Jesus e seus discípulos” (publicado na Alemanha em 1778). Ele defendeu que todos os elementos miraculosos e sobrenaturais do Evangelho seriam invenções dos apóstolos; Jesus não teria ressuscitado, mas morreu desesperado ao ver o insucesso de sua pregação em torno do advento do Reino dos Céus; os discípulos de Jesus acharam que seria um bom negócio dizer que Jesus ressuscitara.


Além destes, o alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) acreditava que o cristianismo histórico pertencia a um estágio passado do desenvolvimento humano ou a um estágio inferior presente.


Foi a partir desse referencial então que alguns teóricos se lançaram à obra de “desmistificar” a Bíblia.


Julius Wellhausen (1844-1918) afirmou que o início do Gênesis é constituído por 2 documentos: Javista e Eloísta; além disso, o Pentateuco foi escrito por diversos autores em períodos diferentes: Javista (850 a.C); Eloísta (750 a.C); Deuteronomista (621 a.C); Sacerdotal (composto desde Ezequiel até Esdras.


Ferdinand C. Baur (1792-1860) aplicou a dialética de Hegel à interpretação do NT. Para Baur, a maioria das Epístolas paulinas foi escrita no 2º século. As únicas autênticas seriam: Rm, 1 e 2 Co e Gl.


As biografias de Jesus


Se os Evangelhos e as epístolas não teriam autenticidade para falar sobre Jesus, quem teria? Fo aí que surgiram inúmeras biografias que pretendiam “revelar” o verdadeiro Jesus.

David Strauss (1808-1874) escreveu “Life of Jesus”, através do qual rejeitava o sobrenatural e introduzia a ideia de “mito”. Para Strauss Jesus foi um mito construído pelos discípulos. Assim, negou a divindade de Jesus e o valor salvífico de sua paixão e morte.


Joseph E. Renan (1823-1892) escreveu “The life of Jesus”. Para Renan Jesus era um grande homem que pregava a teologia do amor. No final da vida morreu obcecado pelo fervor revolucionário.


John R. Seeley (1834-1895) escreveu “Ecce Homo: A Survey of the Life a…”. Segundo Seeley, Jesus não era Deus. A questão é que Jesus esteve tão perto de Deus, que podia-se dizer que Deus estava nele.


Adolf Von Harnack (1851-1930). Considerava que o método histórico-crítico é indispensável para a intepretação da revelação. Assim, eliminava da vida de Cristo tanto os milagres quanto os dogmas. Foi ele quem popularizou a teologia liberal em um livro que é considerado a expressão mais acabada e influente da teologia liberal protestante e ponto alto do movimento: “What is Cristianity?” (O que é o cristianismo?). Segundo Harnack, o cristianismo é a paternidade de Deus; a irmandade da humanidade e o valor infinito da alma.


Os desdobramentos


Entendo que a prática sermônica é a expressão da teologia do pregador. Em outras palavras, a pregação (seu método e conteúdo) expressão a teologia do pregador. Sendo assim, a Teologia Liberal deu à luz sermões destituídos das Escrituras e do poder transformador do Evangelho. Dargan[4] nos informa de alguns sermões desse contexto do início do liberalismo teológico. Vejamos:


1- O perigo de ser sepultado vivo (Um sermão para o domingo de ressurreição);

2- O temor aos fantasmas;

3- A preferência da alimentação do gado no estábulo à prática de alimentá-los no campo;

4- A bênção inefável do cultivo da batata;

5- O valor do café como bebida

6- A importância da vacinação contra a varíola


Perceba que, pela temática envolvida, tratava-se de sermões frívolos, destituídos da mensagem do Evangelho, sem o poder transformador da proclamação do Cristo morto e ressurreto. J. C. Ryle escreveu uma biografia de George Whitefield. Em sua introdução descreve a respeito do contexto eclesiástico da Inglaterra do séc. XIX:


A Igreja da Inglaterra existia naqueles dias com seus artigos admiráveis, sua tradicional liturgia, seu sistema paroquial, seus cultos dominicais e seus dez mil clérigos. O grupo não-conformista existia, com suas liberdades duramente adquiridas e seus púlpitos livres. Mas, infelizmente, uma explicação deve ser dada sobre ambos os grupos. Eles existiam, mas é difícil dizer se viviam. Eles não faziam nada; estavam completamente adormecidos[5].

Qual a razão? Veja:


Teologia natural, sem uma única doutrina distintiva cristã, moralidade fria ou ortodoxia estéril[6], formavam o corpo principal do ensino tanto nas igrejas como nas capelas (grifo meu)[7].

Agora, veja o resultado nos sermões:


Os sermões, em toda parte, eram pouco melhores do que pobres ensaios morais, totalmente destituídos de qualquer coisa capaz de despertar, converter ou salvar almas [...] O célebre advogado Blackstone teve a curiosidade, no princípio do reinado de George III, de ir de igreja em igreja para ouvir cada sacerdote importante em Londres. Ele disse que não ouviu um único discurso que apresentasse mais Cristianismo do que os escritos de Cícero, e que lhe seria impossível descobrir, do que ouvira, se o pregador era um seguidor de Confúcio, de Maomé ou de Cristo![8]

A Teologia Liberal no séc. XX


A modernidade adentrou pelo séc. XX e o liberalismo teológico com ela. Embora essa teologia tenha sido aclamada como morta, pela insurgência de novas teologias e abordagens, acredito que ela ainda continua viva como antes, embora tenha uma roupagem de nosso tempo.


Foi feito um levantamento pelo sociólogo Jeffrey Hadden[9] entre os pastores nos EUA. Nessa pesquisa dez mil pastores protestantes foram questionados. A pesquisa foi feita em maio de 1982 (7.441 dos pastores participaram). Os resultados foram publicados em 1998 (1). Veja que as perguntas são relacionadas com o liberalismo teológico. As respostas são surpreendentes:


1- A Bíblia é a Palavra inspirada e inerrante de Deus?


67% dos Batistas Americanos disseram: Não

82% dos Presbiterianos disseram: Não

87% dos Metodistas disseram: Não

95% de Episcopais disseram: Não


2- Jesus nasceu de uma virgem?


Batistas Americanos 34% disseram: Não

Episcopais 44% disseram: Não

Presbiterianos 49% disseram: Não

Metodistas 60% disseram: Não

Luteranos 19% disseram: Não


3- Jesus era o filho de Deus?


Diante do receio dos pastores em responder a essa pergunta os pesquisadores concederam anonimato às suas denominações. O resultado liberado foi que mais de 80% dos ministros da Igreja Batista Americana, Episcopal, Presbiteriana, Metodista e Luterana responderam que "Não acreditam que Jesus é o filho de Deus“.


4- Você acredita na ressurreição física de Jesus?


Luteranos: 13% disseram: Não

Presbiterianos: 30% disseram: Não

Batista Americana: 33% disseram: Não

Episcopais: 35% disseram: Não

Metodistas: 51% disseram: Não


Sim, o liberalismo continua vivo e destibuindo morte por onde vai. Sua sombra continua a ser sentida domingo após domingo em púlpitos por todo o mundo, inclusive no Brasil.


A teologia liberal entrou no Brasil por meio da academia. Professores americanos, ao longo do séc. XX, vieram lecionar nos Seminários Brasileiros e trouxeram consigo o germe do Liberalismo[10]. Nas palavras de Nicodemos:


“O liberalismo teológico que chegou em nosso país já chegou com formas e propostas diferentes, associado, por exemplo, com a teologia da libertação. Os cursos de teologia oferecidos em universidades seculares ou em universidades teológicas sem nenhum compromisso com a infalibilidade das Escrituras são a porta de entrada do liberalismo em nosso país. O que se percebe claramente é a busca, por parte dos evangélicos, da respeitabilidade acadêmica oferecida pela academia secular. Isso tem feito que o “evangelicalismo” submeta suas instituições teológicas de formação pastoral aos padrões educacionais do Estado e das universidades. Esses padrões, ao contrário do que se pensa, não são cientificamente neutros. São comprometidos metodológica, filosófica e pedagogicamente com a visão humanística e secularizada do mundo. Os cursos de teologia e ciências da religião oferecidos pelas universidades são, geralmente, dominados pelo liberalismo teológico e pelo método histórico-crítico. Com a busca acentuada por um diploma de teologia reconhecido, os evangélicos correm o risco de sacrificar seu compromisso com as Escrituras em troca de qualidade científica prometida e oportunidade de emprego”[11].

Sendo assim, a denúncia de Machen infelizmente continua muito atual, inclusive para o Brasil:


Os pregadores atuais estão tentando trazer as pessoas para a igreja sem exigir que elas se arrependam de seu orgulho; eles estão tentando ajudá-las a evitar a convicção do pecado. O pregador se levanta no púlpito, abre a Bíblia e fala para a igreja, mais ou menos, assim: “Vocês todos são muito bons; vocês respondem bem a todas as exigências que visam o bem da comunidade. Agora, temos na Bíblia, especialmente na vida de Jesus, algo tão bom que, creio eu, será bom mesmo para vocês que já são pessoas boas”. Essa é a pregação de hoje em dia. É isso que se ouve todos os domingos em milhares de púlpitos. Mas é mensagem totalmente fútil.[12]

Note que Machen refere-se à abertura da Bíblia por parte do pregador. Essa é a nova roupagem do liberalismo teológico. O teólogo liberal até abre a Bíblia, mas a partir de uma interpretação subjetivista, sem considerar a intenção autoral. Por isso, Machen continua sua denúncia:


Cansado pelo conflito com o mundo, alguém vai à igreja em busca de descanso para a alma. Mas o que encontra lá? Muito comumente, só é possível encontrar o mesmo tumulto do mundo. O pregador se coloca à frente, não de um lugar secreto de meditação e poder, não com a autoridade da Palavra de Deus permeando sua mensagem, não com a sabedoria humana sendo colocada de lado, pela glória da cruz, mas com opiniões humanas sobre os problemas sociais do momento, ou soluções fáceis para o vasto problema do pecado”[13].

Como fazer frente ao liberalismo?


Diante de tal quadro que se apresenta desolador, segue a pergunta: como fazer frente ao liberalismo teológico? No curto espaço que temos para este artigo, não seria possível ser exaustivos. Mas o fundamento principal da resposta seria a Igreja local. Igrejas realmente centradas nas Escrituras farão frente às ameaças do Liberalismo Teológico.


Assim como os profetas no AT fizeram frente aos falsos profetas; como Jesus repreendeu os fariseus e saduceus que anulavam a Palavra por sua tradição (Mc 7); como Paulo, Pedro, Tiago, se colocaram contra os falsos mestres na igreja primitiva; como os reformadores se posicionaram contra os devaneios da Igreja; como John Knox, William Tyndale, William Perkins, se opuseram aos ditames da Igreja da Inglaterra; como George Whitefield, Jonathan Edwards, Martyn Lloyd Jones, Machen, Francis Shaffer, se ergueram contra a tirania da cultura secular; como tantos homens piedosos têm feito pelo Brasil e pelo mundo, homens de renome ou não, de igrejas numericamente grandes, ou “irrelevantes”, domingo após domingo, a quem queira ou não ouvir: pela pregação fiel de TODA a infalível, autoritativa, inspirada e suficiente Palavra de Deus.


Nelson Galvão



Nelson é casado com Simone desde 1997 e eles têm um filho.

Atua como diretor pedagógico do ministério Pregue a Palavra, como coordenador dos grupos do Pregue a Palavra de Cuba e Moçambique e como professor de História da Igreja, da Escola de Pastores PIBA.

Ele é formado em História e Teologia, pós-graduado em Administração Escolar e mestre em Educação (PUC-SP). Atualmente cursa o programa de mestrado em Teologia do Novo Testamento, no Seminário Bíblico Palavra da Vida- Atibaia, SP.




Referências:


[1] Batista Mondin, Os grandes teólogos do Séc. XX. p. 6

[2] MACHEN, John Gresham. Cristianismo e liberalismo. Shedd, p. 14.

[3] SCHAEFFER, Francis. A Igreja no séc. XXI. Ed. Cultura Cristã. p. 14

[4] DARGAN. A History of preaching. In CRANE. James. O sermão eficaz. Juerp: 1989. p. 18

[6] É curioso que a ortodoxia estéril, conforme denunciada por Ryle, também gere sermões estéreis! Concordo com ele, mas esse é um desdobramento para outro artigo.

[7] Ibid.

[8] Ibid.

[9] Jeffrey Hadden, results of a survey of 7,441 Protestant ministers published in PrayerNet Newsletter, 1998-NOV-13, Page 1. Cited in Current Thoughts & Trends, 1999-MAR, Page 19.

[10] Recomendo: “Fundamentos da Teologia Histórica”, Alderi Souza de Matos, Ed. Mundo Cristão, pág. 260-264.

[12] MACHEN, John Gresham. Cristianismo e liberalismo. Shedd, p. 62

[13] Ibid, p. 14

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