Quero argumentar em favor da igreja local assumir integralmente a responsabilidade pela formação pastoral. Para isto, apresento cinco argumentos simples: bíblico, histórico, prático, econômico e eclesiológico. Veremos que a Bíblia ensina e a história comprova a formação de pastores dentro do contexto da igreja local. Além de estarmos mais alinhados com as Escrituras, o modelo agrega uma série de vantagens práticas para toda a Igreja.
Enfatizo, porém, que não estou defendendo o fim dos seminários; afinal, eu próprio sou resultado deles e creio que representam um papel importante e perderíamos muito se fechassem suas portas. Tampouco considero a formação pastoral na igreja local como uma "pílula mágica" para curar todos os males da igreja. Defendo, apenas, que temos muito a ganhar promovendo modelos saudáveis de formação pastoral formal sob a responsabilidade de igrejas locais fiéis.
O Argumento Bíblico
O Novo Testamento traça a formação dos primeiros presbíteros[1] pelos Apóstolos bem como instruções para as futuras gerações de pastores. O que vemos nas Escrituras é o papel de formação pastoral sendo realizado por presbíteros mais experientes dentro do contexto da igreja local com ênfase em exemplo de vida:
“O que ouviste de mim, diante de muitas testemunhas, transmite a homens fiéis e aptos para também ensinarem a outros.” 2 Timóteo 2.2 (c.f. Fp 1.1; 4.9).
O processo envolve as seguintes etapas gerais:
Identificação pelo(s) presbítero(s) atuante(s) de homens espiritualmente maduros que desejam ser presbíteros e que possuem os dons e habilidades necessárias (1 Tm 3.1-7; Tito 1.5-9).
Ensino da sã doutrina de modo que possa ser reproduzida pelos aprendizes no ensino de outras pessoas (2 Tm 2.2).
Progresso na prática do ministério pastoral debaixo da orientação de presbíteros mais experientes, enfocando pureza de vida e doutrina ao longo do processo (1 Tm 4.11-16; 1 Pd 5.1-4).
Podemos resumir o processo de formação pastoral da seguinte forma: Pastores formam pastores na vivência ministerial e eclesiástica.
O Argumento Histórico
Não havia seminários durante os primeiros 15 séculos da igreja cristã, e foi somente no século 16 em que tanto católicos quanto protestantes começaram a exigir estudos formais como pré-requisito para a ordenação.[2] As primeiras escolas formais desenvolvidas pela igreja eram para catecúmenos a fim de ensinar a sã doutrina para os novos convertidos; temos a escola de Alexandria sendo um exemplo famoso. Como então os pastores eram preparados ao longo dos primeiros séculos da igreja?
Aparentemente, o estudo de teologia não era formal. O ingresso no ministério para alguns como Agostinho e Ambrósio foi em si o despertar para estudos mais profundos e sistemáticos da teologia a fim de atender as demandas do ministério da Palavra e a responsabilidade pela sã doutrina.
Um trecho de uma carta do bispo Cipriano do terceiro século nos fornece uma janela rara para visualizarmos a formação pastoral na igreja antiga:
"Saibam, portanto, que ordenei Saturo como leitor, e Optato como confessor, ambos dos quais, estávamos preparando para fazer parte do clero, desde que confiamos a Saturo mais que uma vez a leitura na Páscoa, e mais tarde, como examinamos cuidadosamente aqueles que deveriam ser os leitores e os presbíteros de ensino, ordenamos Optato como leitor para servir entre aqueles que instruem catecúmenos, e temos examinado todas as qualidades que devem habitar naqueles que estão treinando para o clero."[3]
Aqui vemos o funcionamento de uma residência de formação pastoral, onde dois homens estão sendo preparados para o clero (para serem presbíteros). Responsabilidades menores, mas importantes na igreja foram entregues a eles (“leitor” e “confessor”) enquanto eram acompanhados pela liderança, que mantinha atenção às características necessárias para servirem como pastores. Esse modelo segue em linhas gerais o padrão estabelecido nas epístolas do Novo Testamento.
Mais tarde, outras formas de educação teológica surgirão (mais notavelmente as escolas monásticas da idade média), mas não com o propósito de formação de novos pastores.
O Argumento Prático
Por que médicos passam por uma residência, antes de se formarem? É na residência que o conhecimento teórico se aplica de forma prática, mas ainda debaixo da supervisão de médicos mais experientes. O peso da responsabilidade de vidas é compartilhado e aos poucos solto nas mãos dos novos médicos. Se o cuidado do corpo exige uma residência, quanto mais o cuidado da alma. O pastoreio é aplicar as verdades eternas da Palavra de Deus às vidas complexas de pessoas reais. Não tem outro lugar para fazer residência no pastoreio a não ser a igreja local. A formação pastoral no contexto da igreja local proporciona vivência ministerial de forma natural.
Essa inserção na igreja local produz uma união entre o conhecimento transmitido e as experiências do dia-a-dia. Quem vive a igreja não irá perder tempo com debates que trazem pouco ou nenhum proveito para a igreja. Por outro lado, pastores em treinamento mergulharão com ânimo no estudo de conhecimentos que têm relevância para a igreja local e a atendem em suas necessidades práticas e teológicas.
Formação pastoral na igreja local também tem o benefício adicional de ser replicável em qualquer contexto cultural, geográfico ou histórico. Seminários são um luxo de estruturas grandes e de governos permissíveis à sua existência. Entretanto, a formação pastoral na igreja local pode continuar em contextos de perseguição e também onde a igreja está apenas começando. Bons modelos de formação pastoral na igreja local podem promover excelência, mesmo nos contextos mais difíceis.
O Argumento Econômico
Em média, excelência na formação pastoral custará muito menos na igreja local do que numa instituição extra eclesiástica. Isto se deve principalmente à otimização de recursos já existentes.
O recurso mais caro para a formação pastoral é o recurso humano. Entretanto, se uma igreja já fornece o sustento dos seus pastores, parte do seu tempo pode ser investido na formação pastoral sem maiores investimentos financeiros – já que formação de novos líderes é parte fundamental do papel pastoral. Teólogos e mestres podem ser contratados para ministrar aulas individuais, o que sai muito mais em conta do que contratar professores de tempo integral.
O segundo recurso mais caro na formação pastoral são os prédios onde a formação irá acontecer. Já que a igreja local possui dependências adequadas para fins educacionais, não há necessidade de alugar ou edificar prédios custosos. O custo de manutenção das instalações também já faz parte do orçamento normal da igreja local.
É claro que nenhuma igreja local deve imaginar que pode embarcar num programa formal de formação pastoral sem investimento financeiro. Quando pensamos, porém, no retorno do investimento, veremos que conseguiremos formar mais pastores com melhor qualidade e atenção individual por um investimento menor se trouxermos a formação pastoral para dentro da igreja local.
O Argumento Eclesiológico
Dieumeme Noelliste afirmou que a educação teológica é uma “serva útil da economia de Deus”[4] (Handmaiden em Inglês conota a ideia de uma serva que atende as necessidades cotidianas de, normalmente, uma senhora). Idealmente este é o papel da educação teológica. Mas, o que acontece quando a mãe entrega a criação dos seus filhos à serva? Pois, “A mão que balança o berço é a mão que domina o mundo.”[5] Desta forma, quem realiza a formação da liderança de uma igreja, indiretamente lidera a igreja. Portanto, a liderança de fato da igreja local não são apenas aqueles que foram biblicamente estabelecidos como presbíteros e bispos, mas indiretamente, o corpo docente de pesquisadores, teólogos e mestres do seminário local.
Esta influência dos formadores sobre os pastores e igrejas locais não pode ser subestimada. O destino da Presbyterian Church USA, não pode ser compreendida adequadamente sem perceber movimentos em seminários como Union (Nova Iorque) e Princeton (Nova Jérsei) no final do século 19 e início do século 20. Denominações como os Batistas do Sul no EUA reconheceram a influência dos seus seminários num deslizar para o liberalismo teológico e evitaram o desastre, reformando os seus seminários a tempo. Outras denominações não tiveram as mesmas condições e hoje estão morrendo a morte lenta da descrença.
A liderança doutrinária da igreja são os presbíteros. A formação pastoral é responsabilidade dos presbíteros. Desligar este processo das qualificações bíblicas para o presbitério é entregar a responsabilidade da criação dos filhos para a serva.
É claro que bons seminários (especialmente quando dirigidos por denominações e associações de igrejas saudáveis) podem proporcionar caminhos institucionais que cumprem o mandato bíblico para a formação pastoral. Entretanto, melhor seria que igrejas locais saudáveis assumissem a responsabilidade pela formação dos seus futuros pastores.
Reflexões Finais: Isso pode funcionar na prática?
Tenho argumentado em favor de igrejas locais assumirem integralmente a formação de novos pastores, e demonstrado alguns benefícios que a iniciativa traz à igreja. Porém, muitas perguntas podem ainda persistir e é provável que uma delas seja: ‘Como igrejas locais pequenas podem assumir responsabilidade para uma formação formal de seus vocacionados?’
É exatamente por causa desse desafio prático que seminários têm sido necessários ao longo dos últimos séculos. Como mencionei acima, não estou dizendo que seminários devem fechar as portas ou não colaborar mais para a formação pastoral. Na medida que seminários são instituições dedicadas à promoção de profundo estudo bíblico, reflexão teológica, e treinamento prático para diversos setores de serviço cristão, têm um papel importante no Corpo de Cristo.
Também não quero sugerir que assumir a responsabilidade integral significa que igrejas locais façam tudo sozinhas. Especialmente igrejas pequenas, que devem contar com a ajuda de igrejas locais ao seu redor e o Corpo de Cristo em toda sua multiforme riqueza.
Responsabilidade integral significa que na formação pastoral, os seminários de fato, ocupam o papel de serva da Noiva de Cristo, um papel subordinado. Certamente a grande maioria dos seminários em existência hoje, são o resultado de colaboração de denominações e associações de igrejas locais para a formação de obreiros. Tal ideal é bom e bíblico, mas precisa se manifestar real na prática. A igreja local, e não o aluno, é a senhora a ser servida. Em termos econômicos, a igreja local é a cliente a ser agradada.
Imagine um futuro onde os excelentes professores baseados em seminários podem acompanhar os estudos de estagiários em igrejas locais, debaixo da supervisão do seu(s) pastor(es), como o papel que Simpliciano teve na vida de Ambrósio[6]. Pense na possibilidade de igrejas fiéis maiores serem polos de formação, para receber vocacionados de igrejas menores. Num futuro assim, os melhores mestres (que hoje se encontram na folha de pagamento dos melhores seminários) podem ser criteriosamente alocados para a formação pastoral na igreja local, sendo remunerados dignamente pelo seu tempo (onde o seminário garante um sustento integral ao mestre, o seminário poderia ser o contratado da igreja e receber pelo tempo que compartilhou seu mestre).
A longo prazo, pastores de igrejas locais devem se aprofundar em determinadas áreas de conhecimento e investir parte do seu tempo ministrando na formação de outros. Vamos supor que um pastor tenha interesse especial na História da Igreja. Ele pode fazer estudos formais mais profundos, escrever para o benefício da igreja, e fazer dessa área de ensino a sua contribuição principal na formação de outros pastores. Com o tempo, teremos um corpo docente de pastores-mestres, preparados para investir tanto com a sua experiência de ministério, quanto com os seus profundos conhecimentos. Não esqueçamos que Agostinho, João Calvino e tantos outros teólogos eram pastores de igrejas locais.
Isso tudo é apenas o início de um diálogo a respeito de modelos sustentáveis de formação pastoral formal na igreja local. Porém, ninguém deve duvidar que é possível, inclusive para igrejas pequenas, assumir a responsabilidade da formação dos seus vocacionados, e que igrejas locais podem colaborar para que isso aconteça da melhor forma, incluindo seminários e outros parceiros que o Corpo de Cristo disponibiliza atualmente.
Jeremiah James Davidson
Diretor Executivo da EPPIBA - site
Formado em Administração
de Empresas pela Universidade Rutgers-EUA, e após dois anos de estudos no SBPV Brasil, concluiu seu curso de Mestrado em Artes no Novo e no Antigo Testamento no Biblical Theological Seminary, Pennsylvania-EUA.
[1] Uso os termos “presbítero” e “pastor” intercambiavelmente, entendendo que são dois termos bíblicos que se referem ao mesmo ofício de liderança espiritual. [2] González, Justo L. The history of theological education. Nashville: Abingdon, 2015 (p 117).
[3] Cipriano, Epístola 29 citado em González, Justo L. The history of theological education. Nashville: Abingdon, 2015 (p 5). (Tradução Minha).
[4] Noelliste, Dieumeme. Handmaiden to God’s economy: biblical foundations of theological education em Deininger, Fritz. Foundations for academic leadership. Nürnberg: VTR Publ., 2013 (p 15).
[5] Poesia de William Ross Wallace (1865) “The Hand that Rocks the Cradle is the Hand that Rules the World.”
[6] González, Justo L. The history of theological education. Nashville: Abingdon, 2015 (p 3).
É uma pena que as igrejas não pensam assim.
Muito bom o artigo. Penso assim também