por Joel R. Beeke & Mark Jones |
Ver um príncipe rogar a um mendigo que aceitasse uma esmola seria uma cena estranha; ver um rei rogar a um traidor que aceitasse clemência seria uma cena ainda mais estranha; mas ver Deus rogar a um pecador que ouça Cristo dizer “Estou à porta e bato”, com um coração e um céu repletos de graça para outorgar àquele que abrir – essa é uma cena que assombra os olhos dos anjos. John Bunyan.
Atualmente estamos testemunhando a erosão da pregação bíblica em uma escala sem precedentes. Em sua biografia definitiva sobre o grande evangelista George Whitefield (1714-1770), Arnold Dallimore conclamou pregadores bíblicos a que sejam:
Homens poderosos nas Escrituras, com a vida dominada pela percepção da grandeza, da majestade e da santidade de Deus e com a mente e o coração brilhando com as grandes verdades das doutrinas da graça [...] homens que estejam dispostos a ser tolos por amor a Cristo, que suportem a censura e a falsidade, que arduamente trabalhem e sofram e cujo desejo supremo não seja conquistar o reconhecimento terreno, mas conquistar a aprovação do Mestre quando se apresentarem perante seu imponente tribunal. Serão homens que pregam com o coração quebrantado e os olhos cheios de lágrimas.
Onde estão os pastores que desceram do Monte Sião, conquistados pela graça soberana? Quando olhamos para o cenário ao redor, parece que a igreja está tropeçando porque o púlpito vai esfriando.
Contudo, há esperança até numa época assim. Enquanto, de um lado, as próprias Escrituras apresentam os pré-requisitos para o ministério do Evangelho, de outro, um levantamento da história da pregação nos mostra que o Senhor nunca abandonou seu rebanho. Em cada geração ele tem levantado homens que atacaram as portas do inferno com a simplicidade da sabedoria do céu. Para nós, o passado se torna um farol de esperança em que encontramos alento para nossa própria época. Entre grandes pregadores puritanos, John Bunyan (1628-1688) está entre os mais destacados, pois tinha a capacidade dada por Deus de envolver com suas mensagens não apenas a mente, mas também o coração. Voltemos nossa atenção para Bunyan como pregador – especialmente como pregador ao coração.
Bunyan, o pregador
Certa vez, Carlos II perguntou a John Owen (1616-1683), “o príncipe dos puritanos”, porque ia ouvir a pregação de John Bunyan, o iletrado latoeiro de Bedford. Owen, respondeu: “Majestade, se eu tivesse as habilidades do latoeiro para pregar, voluntariamente abandonaria todo meu estudo”.
Em 1655, a pedido de vários irmãos de sua igreja local, Bunyan, então com 27 anos de idade, começou a pregar em várias igrejas de Bedford enquanto ainda estava afligido profundamente com dúvidas sobre sua própria condição eterna. Acerca daquelas primeiras pregações ele escreve: “Os pavores da lei e a culpa de minhas transgressões eram um peso enorme em minha consciência. Eu pregava o que sentia, o que sentia dolorosamente, até mesmo aquilo que levava minha pobre alma a gemer e a tremer assustada [...] Eu próprio fui em cadeias para pregar a eles em cadeias e levava em minha consciência aquele fogo do qual eu os persuadia a se guardassem”.
Centenas de pessoas vinham ouvir Bunyan, o que o deixava de fato surpreso. Ola Winslow escreve: “No início não acreditando que Deus falaria por meio dele ‘ao coração de qualquer pessoa’, ele logo concluiu que isso podia estar acontecendo, e seu êxito restaurou sua confiança”. Anne Arnott afirma que Bunyan “era um pecador salvo pela graça, que pregava a outros pecadores com base em sua própria experiência sombria. “Tenho sido como alguém enviado a eles dentre os mortos’, ele afirmou. ‘Eu não havia pregado por muito tempo e logo alguns começaram a ser tocados pela Palavra e a ser imensamente afligidos na mente ao compreenderem a extensão de seu pecado e a necessidade que tinham de Jesus Cristo”.
Num prazo de dois anos, Bunyan começou a pregar menos sobre o pecado e muito mais sobre Cristo. Conforme Gordon Wakefield expressou, ele ressaltava Cristo
em seus “ofícios”, isto é, em todas as diferentes atividades que pôde fazer pela alma humana e pelo mundo; [destacava] Cristo como a alternativa salvadora para as falsas seguranças de ganhar e gastar ou das filosofias do egocentrismo ímpio. E, como consequência disso, ‘Deus me conduziu a alguma coisa do mistério da união com Cristo’ [Bunyan afirmou] e, então, veio a pregar também sobre a união, que era o âmago da espiritualidade calvinista.
A pregação de Bunyan, já não trazia somente “uma palavra de admoestação”, mas também de edificação e consolo para os crentes. Isso fortaleceu muitíssimo sua percepção de seu chamado íntimo, o que ajudou poderosamente a persuadi-lo de que estava proclamando a verdade.
Enquanto pregava numa casa de fazenda em 1660, cinco anos depois de começar a proclamar a Palavra de Deus, Bunyan foi preso acusado de pregar sem autorização oficial do rei. Embora Bunyan certamente não fosse um rebelde nem político, parece que os proprietários de terras do condado de Bedfordshire consideravam que sua pregação “agitava perigosamente” e, assim, “disseminava a insatisfação que muitos sentiam com o regime e a igreja restaurados”. Sir Henry Chester, juiz de primeira instância, acusou Bunyan de forma ainda mais contundente: “É alguém pernicioso; no país não existe [outra] pessoa tão perniciosa como ele. Assim, Bunyan foi lançado na prisão, onde escreveu prolificamente e fabricou cadarços por doze anos e meio (1660-1672).
Antes de ser preso, Bunyan havia se casado com uma jovem piedosa de nome Elizabeth. Ela suplicou repetidas vezes pela libertação do marido, afirmando que tinha de cuidar de quatro filhos pequenos (inclusive uma filha cega) e tinha tido um aborto havia pouco tempo. O juiz-presidente disse-lhe que o fizesse parar de pregar. Ela respondeu: “Meu senhor, ele não ousa abandonar a pregação enquanto puder falar”. Bunyan se prontificou a entregar à autoridades judiciárias as notas de todos os seus sermões para provar que não estava de maneira alguma pregando a sedição. Mas isso não deu em nada. Assim, Bunyan permaneceu na prisão pro violar a lei que exigia que pelo menos uma vez por mês os adultos participassem dos cultos da Igreja da Inglaterra e proibia reuniões (conventículos) não autorizados por aquela igreja.
Durante todo seu tempo de prisão, Bunyan conservou um amor diligente pela pregação. Ele escreveu: “Quando, pela boa mão do meu Deus, durante cinco ou seis anos ininterruptos preguei sem restrições o bendito evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo [...] o diabo, aquele antigo inimigo da salvação do homem, se aproveitou para incitar os corações de seus vassalos [...] de modo que no fim um juiz expediu ordem para me procurarem e fui levado e confinado na prisão”. Quando indagado sobre o que faria se fosse solto da prisão, respondeu: “Se eu saísse hoje da prisão, voltaria a pregar o Evangelho amanhã com a ajuda de Deus”. Em outra oportunidade afirmou: “Nem a culpa nem o inferno conseguiram me tirar do meu trabalho”. Ele chegou ao ponto de afirmar que “não podia estar satisfeito a menos que fosse encontrado no exercício de [seu] dom.”
Em toda sua adversidade, a Palavra era como fogo ardendo no coração de Bunyan. De fato, ele previa que ia morrer por aquela Palavra. Mais tarde, escreveu: “Foi por causa da Palavra e do caminho de Deus que eu estava nessa condição [e] eu estava decidido a não recuar dela nem um fio de cabelo [...] Era meu dever estar de acordo com sua Palavra, que ele algum dia dirigisse ou não o olhar para mim, quer viesse ou não a me salvar no final. Por esse motivo, eu pensava, até mesmo de olhos vendados saltarei da escada para a eternidade, quer afunde, que nade, quer venha o céu, quer venha o inferno. Senhor Jesus, se desejas me segurar, faze-o. caso contrário, eu me arriscarei pelo teu nome”.
Em 1661, e de 1668 a 1672, alguns carcereiros permitiam que Bunyan às vezes saísse da prisão para pregar. George Offer assinalou: “Diz-se que muitas das igrejas batistas de Bedfordshire devem sua origem às pregações de Bunyan à meia-noite”. Mas os anos de prisão foram tempos de intensas tribulações. Bunyan experimentou aquilo que mais tarde Cristão e Fiel, personagens de seu livro O peregrino, sofreriam nas mãos do gigante Desespero, que lança peregrinos “num calabouço bem escuro, imundo e malcheiroso”. Bunyan sentia especialmente a dor da distância da esposa e dos filhos, em especial de Mary, “minha pobre filha cega”, descrevendo essa distância como “arrancar a carne de meus ossos”.
A popularidade de Bunyan como pregador não se desfez em seus últimos anos. Com frequência, visitava Londres, “onde”, segundo Robert Southey, “sua reputação era tão grande que, caso se anunciasse sua vinda com um dia de antecedência, o ‘salão em Southwark, onde ele geralmente pregava, não comportava metade das pessoas que acorriam. Três mil pessoas chegaram a se reunir ali, e não menos de mil e duzentas durante a semana e à sete horas de escuras manhãs de inverno”.
Bunyan pregava ao coração dos homens, bem como à mente deles. Não há dúvida de que isso era possível porque ele conhecia por experiência própria tentações, pecados e temores e havia, de uma forma notável, experimentado a graça de Deus em Jesus Cristo. Em sua introdução ao livro de Bunyan Some gospel truths opened [ algumas verdade do evangelho desveladas] John Burton escreveu sobre o autor: “Por meio da graça, ele obteve esses três títulos celestes, a saber, união com Cristo, unção do Espírito e experiência das tentações de Satanás, que preparam melhor um homem para aquela obra poderosa de pregar o Evangelho do que todo o conhecimento e títulos que se pode obter na universidade.”
Bunyan tinha um grande respeito pelo ofício de pregador. Quando, em O peregrino, Cristão viaja para a casa de Intérprete, é mostrado a ele um quadro com a pintura de um pregador, “uma pessoa bastante séria”, cujos olhos estão “erguidos para o céu, com os melhores livros na mão”. Bunyan prossegue: “A lei da verdade estava escrita em seus lábios, o mundo estava atrás de suas costas, e havia uma coroa de ouro em sua cabeça. Ele estava de pé como se implorando aos homens”. Intérprete diz a Cristão o que esse quadro representa: “É para te mostrar que o trabalho dele é conhecer e revelar coisas sombrias aos pecadores [...] para te mostrar que, ao fazer pouco caso das coisas presentes e desprezá-las por causa do amor que ele tem pelo serviço de seu Mestre, está seguro de que receberá a recompensa da glória no mundo vindouro”. Para Bunyan, esse era o ideal daquilo que o pastor deve ser. Para Bunyan, o pregador é o orientador espiritual autorizado por Deus. Gordon Wakefield escreve:
Usando metáforas do Novo Testamento, Intérprete explica que esse homem gera filhos (espirituais), entra em trabalho de parto para dá-los à luz e então é sua ama. A postura de Intérprete, seu conhecimento bíblico e a verdade escrita em seus lábios deixam claro “que seu trabalho é conhecer e revelar coisas sombrias aos pecadores”. Ele abre os segredos divinos de misericórdia e juízo. E precisa fazê-lo renunciando a este muito bem ser caluniado, ridicularizado e perseguido, como aconteceu com Bunyan e muito outros durante a dinastia Stuart.
O amor de Bunyan pela pregação não se limitava às palavras; ele também tinha um zelo intenso por sua igreja. Ele amava pregar e amava as almas do povo. Certa vez ele afirmou: “Na minha pregação, tenho de fato sentido dores e é como se estivesse em trabalho de parto para gerar filhos para Deus. E não podia me dar por satisfeito a menos que aparecessem frutos de meu trabalho”. Em outra passagem, ele escreveu: “Com relação àqueles que foram despertados por meu ministério e vieram a abandonar a fé, como às vezes muitos fizeram, posso dizer que tenho sentido de verdade a perda deles mais do que se um de meus próprios filhos, gerados do meu corpo, tivessem ido para o túmulo”. Bunyan também ficava atônito com a grandeza da alma: “A alma e a sua salvação são coisa tão grandes e tão maravilhosas. Nada é nem deve se assunto de tanta importância quanto a alma de cada um de vós. Casa e terra, profissões e renome, posição social e sucesso – o que são essas coisas comparadas à salvação.
Se jamais houve um homem chamado para o ministério do evangelho, esse homem foi Bunyan. O Espírito Santo lhe concedeu bênçãos divinas, e ele não conseguia, sem violar seriamente a consciência, deixar de lado aqueles dons. Mesmo quando estava na prisão, passava a maior parte do tempo reformulando os sermões que havia pregado para serem publicados. Christopher Hill conclui: “Parece que todos os seu escritos publicados antes de Grace Abounding [Graça em abundância] se basearam em sermões, e é provável que o mesmo também tenha acontecido com a maioria dos que publicou mais tarde’. Hill levanta a possibilidade de que os sermões falados de Bunyan fossem bem mais pessoais e expressassem muito mais suas emoções do que suas obras publicadas. Ele acrescenta: “Também podemos supor que os coloquialismos, os detalhes corriqueiros que sobrevivem na nobreza da palavra impressa, teriam ocupado uma parte significativa de suas palavra faladas.”
Joel R. Beeke & Mark Jones
Extraído do livro: Teologia Puritana. Doutrina para a vida. Ed. Vida Nova. p. 1005-1011.
Publicado com permissão.
Comments