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A DECLARAÇÃO DE CHICAGO SOBRE HERMENÊUTICA BÍBLICA



O primeiro encontro do Conselho Internacional de Inerrância Bíblica ocorreu em Chicago nos dias 26 e 28 de outubro de 1978 com o propósito de reafirmar a doutrina da inerrância das Escrituras, deixar claro o entendimento a respeito dela e alertar contra sua negação. Nos sete anos desde o primeiro encontro, Deus abençoou esse esforço de maneiras que superaram a maioria das expectativas. Um gratificante surgimento de literatura útil sobre a doutrina da inerrância, bem como um crescente compromisso com seu valor, são motivos para louvor ao nosso grande Deus.


O trabalho do primeiro encontro mal tinha sido concluído quando ficou evidente que havia mais uma grande tarefa a ser realizada. Embora reconheçamos a crença na inerrância das Escrituras como fundamental para sustentar sua autoridade, os valores desse compromisso são reais apenas na medida da compreensão de alguém quanto à interpretação das Escrituras. Assim, surge a necessidade do segundo encontro. Durante dois anos, planos foram feitos e artigos foram escritos sobre temas relacionados aos princípios e práticas hermenêuticas. O ápice deste esforço foi uma reunião em Chicago nos dias 10 e 13 de novembro de 1982, da qual nós, os abaixo assinados, participamos.

Da mesma forma que a Declaração de Chicago de 1978, apresentamos as afirmações e negações como expressão do resultado de nossos trabalhos para esclarecer questões e princípios hermenêuticos. Não reivindicamos totalidade ou tratamento sistemático de todo o assunto, mas essas afirmações e negações representam um consenso dos cerca de cem participantes e observadores reunidos nesta conferência. Os diálogos têm sido uma experiência edificante, e é nossa oração que Deus use o produto de nossos esforços diligentes para permitir que nós e outros possam manejar corretamente a palavra da verdade (2Tim 2:15).


ARTIGOS DE AFIRMAÇÃO E NEGAÇÃO

Artigo I

Afirmamos que a autoridade normativa da Sagrada Escritura é a autoridade do próprio Deus e é atestada por Jesus Cristo, o Senhor da Igreja.


Negamos que seja legitimo separar a autoridade de Cristo da autoridade das Escrituras, ou opor um ao outro.


Artigo II

Afirmamos que, como Cristo é Deus e Homem em uma Pessoa, também a Escritura é, indivisivelmente, a Palavra de Deus na linguagem humana.


Negamos que a forma humilde e humana das Escrituras implique em erro, tanto quanto que a humanidade de Cristo, mesmo em Sua humilhação, implica pecado.


Artigo III

Afirmamos que a Pessoa e obra de Jesus Cristo são o foco central de toda a Bíblia.


Negamos que qualquer método de interpretação que rejeite ou obscureça a centralidade de Cristo nas Escrituras seja correto.


Artigo IV

Afirmamos que o Espírito Santo que inspirou as Escrituras age através dela hoje para produzir fé em sua mensagem.


Negamos que o Espírito Santo ensine qualquer coisa, a qualquer um, que seja contrária ao ensino das Escrituras.


Artigo V

Afirmamos que o Espírito Santo capacita os crentes para que se apropriem e apliquem as Escrituras às suas vidas.


Negamos que o homem natural seja capaz de discernir espiritualmente a mensagem bíblica, sem a intervenção do Espírito Santo.


Artigo VI

Afirmamos que a Bíblia expressa a verdade de Deus em declarações proposicionais e declaramos que a verdade bíblica é objetiva e absoluta. Afirmamos ainda que uma declaração é verdadeira se ela representar assuntos como realmente são, mas é um erro se representar incorretamente os fatos.


Negamos que, enquanto as Escrituras são capazes de nos tornar sábios para a salvação, a verdade bíblica deve ser definida em termos desta função. Negamos ainda que o erro deve ser definido apenas como aquele que deliberadamente engana.


Artigo VII

Afirmamos que o significado expresso em cada texto bíblico é único, definitivo e fixo.


Negamos que o reconhecimento deste único significado elimine a variedade de sua aplicação.


Artigo VIII

Afirmamos que a Bíblia contém ensinamentos e mandatos que se aplicam a todos os contextos culturais e situacionais e outros mandatos que a própria Bíblia mostra serem aplicados apenas a situações particulares.


Negamos que a distinção entre os mandatos universais e particulares das Escrituras possa ser determinada por fatores culturais e situacionais. Negamos ainda que os mandatos universais possam ser tratados como relativos a culturas ou situações.


Artigo IX

Afirmamos que o termo hermenêutica, que historicamente significava as regras da exegese, pode ser devidamente estendido para abranger tudo o que está envolvido no processo de perceber qual o significado da revelação bíblica e como ela se aplica em nossas vidas.


Negamos que a mensagem das Escrituras deriva ou seja ditada pelo entendimento do intérprete. Assim, negamos que os "horizontes" do escritor bíblico e do intérprete possam se "fundir" de tal forma que aquilo que o texto comunica ao intérprete não seja, em última análise, controlado pelo significado expresso das Escrituras.


Artigo X

Afirmamos que as Escrituras comunicam verbalmente a verdade de Deus para nós através de uma grande variedade de formas literárias.


Negamos que qualquer um dos limites da linguagem humana torne as Escrituras inadequadas para transmitir a mensagem de Deus.


Artigo XI

Afirmamos que as traduções do texto das Escrituras podem comunicar o conhecimento de Deus através de todas as fronteiras temporais e culturais.


Negamos que o significado dos textos bíblicos esteja tão ligado à cultura da qual eles vieram que a compreensão do mesmo significado em outras culturas é impossível.


Artigo XII

Afirmamos que, na tarefa de traduzir a Bíblia e ensiná-la no contexto de cada cultura, apenas os equivalentes funcionais que são fiéis ao conteúdo do ensino bíblico devem ser empregados.


Negamos a legitimidade de métodos que ou são insensíveis às demandas da comunicação transcultural ou distorcem o significado bíblico no processo.


Artigo XIII

Afirmamos que a consciência das categorias literárias, em suas formas e estilos, das diferentes partes das Escrituras é essencial para a exegese adequada, e por isso valorizamos a “crítica do gênero” como uma das muitas disciplinas do estudo bíblico.


Negamos que categorias genéricas que neguem a historicidade possam ser impostas às narrativas bíblicas que se apresentem como factuais.


Artigo XIV

Afirmamos que o registro bíblico de eventos, discursos e falas, embora apresentados em uma variedade de formas literárias apropriadas, corresponde ao fato histórico.

Negamos que qualquer evento, discurso ou fala relatado nas Escrituras foi inventado pelos escritores bíblicos ou pelas tradições que eles incorporavam.


Artigo XV

Afirmamos a necessidade de interpretar a Bíblia de acordo com seu sentido literal ou normal. O sentido literal é o sentido histórico-gramatical, ou seja, o significado que o escritor expressou. A interpretação de acordo com o sentido literal levará em conta todas as figuras de linguagem e formas literárias encontradas no texto.


Negamos a legitimidade de qualquer abordagem das Escrituras que atribua a ela algum significado que o sentido literal não suporte.


Artigo XVI

Afirmamos que técnicas críticas legítimas devem ser utilizadas na determinação do texto canônico e seu significado.


Negamos a legitimidade de permitir que qualquer método de crítica bíblica questione a verdade ou integridade do significado expresso do escritor, ou de qualquer outro ensinamento bíblico.


Artigo XVII

Afirmamos a unidade, harmonia e consistência das Escrituras e declaramos que ela própria é sua melhor intérprete.


Negamos que as Escrituras possam ser interpretadas de forma a sugerir que uma passagem corrija ou milite contra outra. Negamos que os escritores posteriores das Escrituras interpretaram incorretamente passagens anteriores das Escrituras ao citar ou se referir a elas.


Artigo XVIII

Afirmamos que a interpretação da Bíblia pela própria Bíblia é sempre correta, nunca se desviando, mas sim elucidando, o sentido único do texto inspirado. O significado único das palavras de um profeta inclui, mas não se restringe, à compreensão dessas palavras pelo profeta e, necessariamente, envolve a intenção de Deus evidenciada no cumprimento dessas palavras.


Negamos que os escritores das Escrituras sempre entenderam todas as implicações de suas próprias palavras.


Artigo XIX

Afirmamos que qualquer pressuposto que o intérprete traga para as Escrituras deve estar em harmonia com o ensino bíblico e sujeito a ser corrigido por ele.

Negamos que as Escrituras devem ser obrigadas a se adequar a pressupostos alheios e inconsistentes a ela, como o naturalismo, evolucionismo, cientificismo, secularismo e relativismo.


Artigo XX

Afirmamos que, uma vez que Deus é o autor de toda a verdade, todas as verdades, bíblicas e extrabíblicas, são consistentes e coerentes, e que a Bíblia fala a verdade quando toca em assuntos relativos à natureza, história ou qualquer outra coisa. Afirmamos ainda que, em alguns casos, dados extrabíblicos têm valor para esclarecer o que as Escrituras ensinam, e para incitar a correção de interpretações defeituosas.


Negamos que visões extrabíblicas refutem o ensino das Escrituras ou tenham primazia sobre ela.


Artigo XXI

Afirmamos a harmonia das revelações especial e geral e, portanto, a harmonia do ensino bíblico com os fatos da natureza.


Negamos que quaisquer fatos científicos genuínos são inconsistentes com o verdadeiro significado de qualquer passagem das Escrituras.


Artigo XXII

Afirmamos que Gênesis 1-11 é factual, assim como o resto do livro.


Negamos que os ensinamentos do Gênesis 1-11 são mitológicos e que hipóteses científicas sobre a história da Terra ou a origem da humanidade possam ser invocadas para derrubar o que as Escrituras ensinam sobre a criação.


Artigo XXIII

Afirmamos a clareza das Escrituras e, especificamente, de sua mensagem quanto a salvação do pecado.


Negamos que todas as passagens das Escrituras sejam igualmente claras ou tenham igual relação na mensagem da redenção.


Artigo XXIV

Afirmamos que uma pessoa não depende do conhecimento especializado dos acadêmicos bíblicos para a compreensão das Escrituras.


Negamos que uma pessoa deva ignorar os frutos do estudo técnico das Escrituras por acadêmicos bíblicos.


Artigo XXV

Afirmamos que o único tipo de pregação que transmite suficientemente a revelação divina e sua adequada aplicação à vida é aquela que expõe fielmente o texto das Escrituras como a Palavra de Deus.


Negamos que o pregador tenha qualquer mensagem de Deus além do texto das Escrituras.


A DECLARAÇÃO DE CHICAGO SOBRE HERMENÊUTICA BÍBLICA

EXPOSIÇÃO*


Os parágrafos a seguir descrevem o entendimento teológico geral que a Declaração de Chicago sobre hermenêutica bíblica reflete. Eles foram inicialmente elaborados como um estímulo para essa declaração. Eles foram revisados à luz dos artigos da declaração e de muitas sugestões específicas recebidas durante a conferência na qual ela foi primeiramente esboçada. Embora a revisão não pudesse ser concluída a tempo de ser apresentada na conferência, existem fortes motivos para considerar seu conteúdo como expressão, com ampla precisão, da posição teológica dos signatários da declaração.


Fundamentos desta exposição

O Deus vivo, Criador e Redentor, é um comunicador, e as Escrituras inspiradas e inerrantes que expõe diante de nós sua revelação salvadora na história é seu meio de se comunicar conosco hoje. Aquele que uma vez falou com o mundo através de Jesus Cristo, seu Filho, fala-nos ainda dentro e através de sua Palavra escrita. Publicamente e privadamente, portanto, através da pregação, estudo pessoal e meditação, com oração e na comunhão do corpo de Cristo, o povo cristão deve trabalhar continuamente para interpretar as Escrituras, para que sua mensagem divina normativa para nós possa ser devidamente compreendida. Incorporar o conceito bíblico das Escrituras como revelação autoritativa por escrito, a regra dada por Deus para fé e para a vida, não obterá resultados se a mensagem das Escrituras não for corretamente compreendida e aplicada. Por isso, é de vital importância detectar e descartar formas defeituosas de interpretar o que está escrito e substituí-las por uma interpretação fiel da Palavra infalível de Deus.


Esse é o propósito que esta exposição busca servir. O que ela oferece são perspectivas básicas sobre a tarefa hermenêutica à luz de três convicções. Primeiro, as Escrituras, sendo a própria instrução de Deus para nós, são verdadeiras e totalmente confiáveis. Em segundo lugar, a hermenêutica é crucial para a batalha pela autoridade bíblica na igreja contemporânea. Terceiro, como o conhecimento da inerrância das Escrituras deve controlar a interpretação, proibindo-nos de desconsiderar qualquer coisa que as Escrituras provem afirmar, assim a interpretação deve esclarecer o escopo e o significado dessa inerrância, determinando quais são as afirmações que as Escrituras realmente estão fazendo.


A Comunhão entre Deus e a Humanidade

Deus criou a humanidade à sua própria imagem, pessoal e racional, para eterna relação amorosa consigo mesmo em uma comunhão que repousa em uma comunicação de duas vias: Deus nos dirige palavras de revelação e respondemos a ele em palavras de oração e louvor. O dom divino da linguagem nos foi dado, em parte, para tornar possível esses diálogos e, em parte, também para que possamos compartilhar nossa compreensão de Deus com os outros.


Ao testemunhar o processo histórico de Adão a Cristo, pelo qual Deus restabeleceu a comunhão com a humanidade caída, as Escrituras descrevem-No como constantemente usando Seu dom da linguagem para enviar aos homens mensagens sobre o que Ele faria e o que eles deveriam fazer. O Deus da Bíblia usa muitas formas de fala: Ele narra, informa, instrui, adverte, argumenta, promete, comanda, explica, exclama, suplica e incentiva. O Deus que salva é também o Deus que fala de todas essas maneiras.


Escritores bíblicos, historiadores, profetas, poetas e professores citam as Escrituras como a Palavra de Deus para todos os seus leitores e ouvintes. Considerar as Escrituras como o convite pessoal do Criador à comunhão, que estabelece os padrões de fé e santidade não apenas para seu próprio tempo, mas para todos os tempos, é parte integrante da fé bíblica.


Embora Deus seja revelado na ordem natural, no curso da história e pela consciência, o pecado torna a humanidade insensível e não responsiva a essa revelação geral. A revelação geral é, em último caso, apenas uma divulgação do Criador como o bom Senhor do mundo e justo juiz; mas não fala da salvação através de Jesus Cristo. Saber sobre o Cristo das Escrituras é, portanto, uma necessidade para o conhecimento e comunhão com Deus pelo qual Ele chama pecadores hoje. Na medida em que a mensagem bíblica é ouvida, lida, pregada e ensinada, o Espírito Santo trabalha com e através dela para abrir os olhos dos espiritualmente cegos e incutir neles esse conhecimento.


Deus fez com que as Escrituras fossem escritas e o Espírito assim ministra com ela, de tal maneira que todos os que a leem, humildemente buscando a ajuda de Deus, serão capazes de entender sua mensagem salvadora. O ministério do Espírito não faz desnecessária a disciplina do estudo pessoal, mas a faz ser eficaz.


Negar o caráter racional, verbal e cognitivo da comunicação de Deus conosco, postular uma antítese, como alguns fazem, entre a revelação como sendo pessoal e proposicional, e duvidar da adequação da linguagem como a temos para nos trazer a mensagem autêntica de Deus são erros fundamentais. A humilde forma verbal da linguagem bíblica não a invalida como revelação da mente de Deus, assim como a humilde forma de servo da Palavra feita carne não invalida a alegação de que Jesus realmente revela o Pai.


Negar que Deus deixou claro nas Escrituras tudo quanto cada ser humano precisa saber para seu bem-estar espiritual seria um erro adicional. Quaisquer obscuridades que encontramos nas Escrituras não são intrínsecas a ela, mas refletem nossas próprias limitações de informação e discernimento. As Escrituras são claras e suficientes, tanto como fonte de doutrina, vinculando a consciência, quanto como guia para a vida eterna e a santidade, moldando nossa adoração e serviço ao Deus que cria, ama e salva.


A Autoridade das Escrituras

A Sagrada Escritura é a autorrevelação de Deus na e através das palavras dos homens. Ela é tanto a testemunha de Deus para eles como o testemunho de Deus sobre si mesmo. Como registro divino-humano e interpretação da obra redentora de Deus na história, ela é revelação cognitiva, verdade direcionada às nossas mentes para compreensão e resposta. Deus é sua fonte, e Jesus Cristo, o Salvador, é seu centro de referência e assunto principal. Seu valor absoluto e permanente como uma diretiva infalível para a fé e a vida vem do fato de ser entregue por Deus (2 Tm. 3:15-17). Sendo tão divina quanto humana, ela expressa a sabedoria de Deus em todos os seus ensinamentos e fala de forma confiável – isto é, infalivelmente e inerrantemente, em cada afirmação informativa que faz. Ela é um conjunto de escritos ocasionais, cada um com sua própria característica e conteúdo específicos, que juntos constituem um organismo de verdade universalmente relevante, ou seja, más notícias sobre o pecado humano universal e a necessidade de resposta às boas novas sobre um determinado judeu do primeiro século que é revelado como sendo o Filho de Deus e o único Salvador do mundo. O volume que esses livros constituintes alcançam é tão amplo quanto a vida e carrega todos os problemas humanos e aspectos do comportamento. Ao expor diante de nós a história da redenção – a lei e o evangelho, os comandos de Deus, promessas, ameaças, obras e caminhos; e as lições-objeto sobre fé e obediência e seus opostos, com seus respectivos resultados – as Escrituras nos mostram todo o panorama da existência humana como Deus deseja que a vejamos.


A autoridade da Sagrada Escritura está ligada à autoridade de Jesus Cristo, cujas palavras registradas expressam o princípio de que o ensino das Escrituras de Israel (nosso Antigo Testamento), juntamente com seu próprio ensinamento e testemunho dos apóstolos (nosso Novo Testamento), constituem sua regra de fé e conduta designada para seus seguidores. Ele não criticou sua Bíblia, embora tenha criticado interpretações erradas dela; pelo contrário, ele afirmou sua autoridade vinculante sobre ele e todos os seus discípulos (Mt. 5:17-19). Separar a autoridade de Cristo da autoridade das Escrituras e colocar em posição um ao outro são, portanto, erros. Colocar em oposição a autoridade de um apóstolo à de outro ou colocar em oposição o ensino de um apóstolo em uma ocasião ao seu ensino em outro momento também são erros.


O Espírito Santo e as Escrituras

O Espírito Santo de Deus, que moveu os autores humanos para produzir os livros bíblicos, agora os acompanha com seu poder. Ele levou a igreja a discerni-los como inspirados no processo de canonização; ele continuamente confirma esse discernimento aos indivíduos através do impacto único que Ele faz com que as Escrituras lhe causem. Ele os ajuda enquanto estudam, oram, meditam e buscam aprender na igreja, a entenderem e comprometerem-se com as coisas que a Bíblia ensina, e conhecer o Deus triuno vivo a quem a Bíblia apresenta.


A iluminação do Espírito só pode ser esperada onde o texto bíblico é diligentemente estudado. A iluminação não rende uma nova verdade, acima ou além do que a Bíblia diz; em vez disso, ela nos permite ver o que as Escrituras estavam nos mostrando o tempo todo. A iluminação liga nossas consciências às Escrituras como Palavra de Deus e traz alegria e adoração à medida que encontramos a Palavra cedendo a nós seu significado. Em contraste, impulsos intelectuais e emocionais para desconsiderar ou discutir com o ensino das Escrituras não vêm do Espírito de Deus, mas de alguma outra fonte. Evidentes mal-entendidos e interpretações erradas das Escrituras não podem ser atribuídos ao Espírito.


A Ideia de Hermenêutica

A hermenêutica bíblica tem sido tradicionalmente entendida como o estudo dos princípios certos para a compreensão do texto bíblico. A "compreensão" pode parar em um nível teórico e nocional, ou pode avançar através do parecer favorável e compromisso da fé para se tornar experiencial através do conhecimento pessoal com o Deus a quem as teorias e noções se referem. A compreensão teórica das Escrituras requer de nós não mais do que é necessária para compreender qualquer literatura antiga, ou seja, conhecimento suficiente da linguagem e do fundo e empatia suficiente com o contexto cultural diferente. Mas não há compreensão experiencial das Escrituras – nenhum conhecimento pessoal do Deus a quem ela aponta, sem a iluminação do Espírito. A hermenêutica bíblica estuda a forma como ambos os níveis de compreensão são atingidos.


O Escopo da Interpretação Bíblica

A tarefa do intérprete em uma definição mais ampla é entender tanto o que as Escrituras significavam historicamente como o que significa para nós hoje, ou seja, como ela se aplica em nossas vidas. Esta tarefa envolve três atividades constantes.


Primeiro vem a exegese, a extração do texto daquilo que Deus, pelo escritor humano, estava expressando aos leitores originais.


Em segundo lugar vem a integração, a correlação do que cada empreendimento exegético resultou com qualquer outro ensinamento bíblico sobre o assunto em questão e com o resto do ensino bíblico. Somente dentro deste quadro de referência pode-se determinar o significado completo do ensino extraído na exegese.


Em terceiro lugar vem a aplicação do ensino, visto explicitamente como o ensino de Deus, para a correção e direcionamento do pensamento e da ação. A aplicação baseia-se no conhecimento de que o caráter e a vontade de Deus, sobre a natureza e a necessidade do homem, o ministério salvador de Jesus Cristo, os aspectos experienciais da divindade, incluindo a vida comum da igreja e a relação multifacetada de Deus e seu mundo, inclusive seu plano para sua história, são realidades que não mudam com o passar dos anos. É com essas questões que ambos os Testamentos constantemente lidam.


A interpretação e a aplicação das Escrituras ocorrem mais naturalmente na pregação e toda a pregação deve ser baseada neste procedimento triplo. Caso contrário, o ensino bíblico será mal compreendido e mal aplicado, e a confusão e a ignorância sobre Deus e seus caminhos será o resultado.


Regras Formais de Interpretação Bíblica

O uso fiel da razão na interpretação bíblica é ministerial, não magistral; o intérprete crente usará sua mente não para impor ou fabricar significado, mas para compreender o significado que já está lá no próprio material. O trabalho de estudiosos que, embora não sejam eles próprios cristãos, foram capazes de entender com precisão as ideias bíblicas será um recurso valioso na parte teórica da tarefa do intérprete.


a. A interpretação deve preferir o sentido literal, ou seja, o único significado literário que cada passagem carrega. A busca inicial é sempre pelo que o amanuense de Deus quis dizer com o que escreveu. A disciplina da interpretação exclui todas as tentativas de deixar o texto, assim como exclui toda a leitura que impõe sobre o texto significados que não podem ser lidos a partir dele e toda a busca de ideias desencadeadas em nós pelo texto que não surge da parte do próprio autor – expressado no fluxo de pensamento. Símbolos e figuras da linguagem devem ser reconhecidos pelo que são e alegorias arbitrárias (diferentes da tipologia que estava evidente na mente do escritor) devem ser evitadas.


b. O sentido literal de cada passagem deve ser buscado pelo método gramatico-histórico, ou seja, perguntando qual é a maneira linguisticamente natural de entender o texto em seu cenário histórico. Estudo textual, histórico, literário e teológico, auxiliado por habilidades linguísticas – filológicas, semânticas, lógicas, é o caminho a ser seguido. As passagens devem ter sua exegese realizada no contexto do livro do qual fazem parte, e a busca pelo significado pretendido do escritor deve ser constantemente buscado. O uso legítimo das várias disciplinas críticas não é colocar em questão a integridade ou a verdade do significado do escritor, mas simplesmente para nos ajudar a determiná-lo.


c. A interpretação deve aderir ao princípio da harmonia no material bíblico. As Escrituras exibem uma ampla diversidade de conceitos e pontos de vista dentro de uma fé comum e uma revelação progressiva da verdade divina dentro do período bíblico. Essas diferenças não devem ser minimizadas, mas a unidade que sustenta a diversidade não deve ser perdida em nenhum momento. Devemos olhar para as Escrituras para interpretar as Escrituras e negar, como uma questão de método, que textos particulares, dos quais todos têm o único Espírito Santo como fonte, possam ser genuinamente discrepantes uns com os outros. Mesmo quando não podemos, no momento, demonstrar sua harmonia de forma convincente, devemos preceder pressupondo que eles são de fato harmoniosos e que o conhecimento mais completo mostrará isso.


d. A interpretação deve ser canônica, ou seja, o ensino da Bíblia como um todo deve ser sempre visto como o pano de fundo sobre o qual nossa compreensão de cada passagem em particular deve ser alcançada e na qual ela deve ser encaixada.


A disciplina da crítica de gênero, que busca identificar em termos de estilo, forma e conteúdo, as diversas categorias literárias às quais os livros bíblicos e passagens em particular pertencem é valiosa como auxílio na determinação do significado literal das passagens bíblicas. O gênero literário no qual cada escritor cria seu texto pertence, pelo menos em parte, à sua própria cultura, e será esclarecido através do conhecimento dessa cultura. Uma vez que os erros sobre o gênero levam a mal-entendidos em larga escala do material bíblico é importante que essa disciplina em particular não seja negligenciada.


A Centralidade de Jesus Cristo na Mensagem Bíblica

Jesus Cristo e a graça salvadora de Deus nele são os temas centrais da Bíblia. Tanto o Antigo como o Novo Testamento testemunham Cristo e a interpretação do Novo Testamento sobre o Antigo Testamento aponta consistentemente para ele. Tipos e profecias no Antigo Testamento anteciparam sua vinda, sua morte expiatória, sua ressurreição, seu reinado e seu retorno. O ofício e o ministério dos sacerdotes, profetas e reis, as ofertas rituais e sacrifícios divinamente instituídos e os padrões de ação redentora na história do Antigo Testamento, todos tinham significado tipológico como prenúncio de Jesus. Os crentes do Antigo Testamento ansiavam por sua vinda e viveram e foram salvos pela fé que tinha Cristo e seu reino à vista, assim como os cristãos de hoje são salvos pela fé em Cristo, o Salvador, que morreu por nossos pecados, que agora vive e reina e um dia voltará. Que as Escrituras revelam que a igreja e o Reino de Jesus Cristo são centrais para o plano de Deus não está aberto a questionamento, embora as opiniões se dividam quanto à maneira precisa pela qual igreja e Reino se relacionam entre si. Qualquer forma de interpretar as Escrituras que não seja consistentemente centrada em Cristo deve ser julgada errônea.


Conhecimento Bíblico e Extrabíblico

Uma vez que todos os fatos coadunam, a verdade sobre eles deve ser coerente também; e uma vez que Deus, o autor de todas as Escrituras, também é o Senhor de todos os fatos, não pode, em princípio, haver contradição entre uma compreensão correta do que as Escrituras dizem e um relato certo de qualquer realidade ou evento na ordem criada. Qualquer aparência de contradição aqui sugere mal-entendido ou conhecimento inadequado, seja do que as Escrituras realmente afirmam ou do que os fatos extrabíblicos realmente são. Portanto, essa discrepância é uma convocação para reavaliação e estudos acadêmicos mais profundos.


Declarações Bíblicas e Ciências Naturais

O que a Bíblia diz sobre os fatos da natureza é tão verdadeiro e confiável quanto qualquer outra coisa que ela diga. No entanto, ela fala de fenômenos naturais como são falados na língua comum, não nos termos técnicos explicativos da ciência moderna; ele explica os eventos naturais em termos da ação de Deus, não em termos de ligações causais dentro da ordem criada; e descreve processos naturais em linguagem figurada e poética e não analítica, como a ciência moderna procura fazer. Sendo assim, as diferenças de opinião quanto ao relato científico correto de certos dados fatos e eventos naturais que as Escrituras celebram dificilmente podem ser evitadas.


Deve-se lembrar, no entanto, que as Escrituras foram dadas para revelar a Deus, não abordar questões científicas em termos científicos, e que, como não usa a linguagem da ciência moderna, não requer conhecimento científico sobre os processos internos da criação de Deus para a compreensão de sua mensagem essencial sobre Deus e nós mesmos. As Escrituras interpretam o conhecimento científico relacionando-o com o propósito e obra revelados de Deus, estabelecendo assim um contexto final para o estudo e reforma das ideias científicas. Não cabe às teorias científicas ditar o que as Escrituras podem ou não dizer, embora informações extrabíblicas às vezes exponham uma má interpretação das Escrituras.


De fato, questionar declarações bíblicas sobre a natureza à luz do conhecimento científico sobre determinado assunto pode ajudar a alcançar uma exegese mais precisa delas. Pois, embora a exegese deva ser controlada pelo texto em si, não moldada por considerações externas, o processo exegético é constantemente estimulado ao se questionar o texto sobre se significa isso ou aquilo.


Norma e Cultura na Revelação Bíblica

Assim como encontramos nas Escrituras verdades imutáveis sobre Deus e sua vontade expressas em uma variedade de formas verbais, também as encontramos aplicadas em uma variedade de contextos culturais e situacionais. Nem todo o ensino bíblico sobre conduta é normativo para o comportamento de hoje. Algumas aplicações de princípios morais são restritas a um público limitado, cuja natureza e extensão das quais a própria Escritura especifica. Uma tarefa da exegese é distinguir essas verdades absolutas e normativas daqueles aspectos de sua aplicação que são relativos a situações contingenciais. Somente quando essa distinção é identificada podemos esperar ver como as mesmas verdades absolutas se aplicam a nós em nossa própria cultura.


Deixar de ver como uma aplicação particular de um princípio absoluto foi culturalmente determinada (por exemplo, como a maioria concordaria, o comando de Paulo de que os cristãos se cumprimentem com um beijo) ou tratar um absoluto revelado como culturalmente relativo (por exemplo, como a maioria concordaria, a proibição de Deus no Pentateuco da atividade homossexual) são, ambos, erros. Embora os desenvolvimentos culturais, incluindo valores convencionais e mudanças sociais dos últimos dias, possam legitimamente desafiar as formas tradicionais de aplicar princípios bíblicos, eles não podem ser usados para modificar esses princípios em si mesmos ou para evitar, completamente, suas aplicações.


Na comunicação intercultural um passo adicional deve ser dado, o professor cristão deve reaplicar absolutos revelados a pessoas que vivem em uma cultura que não é do próprio professor. As exigências desta tarefa destacam a importância de ele ser claro sobre o que é absoluto na apresentação bíblica da vontade e obra de Deus e o que é uma aplicação relativa à cultura da vontade e obra de Deus. Engajar-se nesta tarefa pode ajudá-lo a ser mais claro neste ponto, tornando-o mais alerta do que antes para a presença nas Escrituras de aplicações culturalmente condicionadas da verdade, que têm que ser ajustadas de acordo com a variável cultural.


Encontrando Deus através de Sua Palavra

O século XX tem visto muitas tentativas de afirmar a instrumentalidade das Escrituras em trazer-nos a Palavra de Deus, ao mesmo tempo em que nega que essa Palavra foi estabelecida para sempre nas palavras do texto bíblico. Essas visões consideram o texto como a testemunha humana falível por meio da qual Deus molda e solicita essas percepções que ele nos dá através da pregação e do estudo bíblico. Mas, na maioria das vezes, essas visões incluem a negação de que a Palavra de Deus é comunicação cognitiva e assim elas caem inescapavelmente em misticismo impressionista. Além disso, sua negação de que a Escritura é a Palavra objetivamente dada por Deus torna a relação dessa Palavra com o texto indefinível e, portanto, permanentemente problemática. Isso é verdade em todas as formas atuais de neo-ortodoxia e teologia existencialista, incluindo a assim chamada "nova hermenêutica", que é uma versão extrema e incoerente da abordagem descrita.


A necessidade de apreciar as diferenças culturais entre o nosso mundo e o dos escritores bíblicos e de estar pronto para descobrir que Deus, através de sua Palavra, está desafiando os pressupostos e limitações de nossa perspectiva atual são duas ênfases atualmente associadas à "nova hermenêutica". Mas ambos, de fato, pertencem ao entendimento da tarefa interpretativa que esta exposição estabeleceu anteriormente.


O mesmo se aplica à ênfase colocada na teologia do tipo existencialista sobre a realidade de encontros transformadores com Deus e seu Filho, Jesus Cristo, através das Escrituras. Certamente, a glória das Escrituras é que elas de fato mediam a comunhão vivificadora com o Deus encarnado, o Cristo vivo de quem elas testemunham, o salvador divino cujas palavras "são espírito e... são a vida" (João 6:63). Mas não há outro Cristo que não o Cristo da Bíblia e apenas na medida em que a apresentação da Bíblia de Jesus e do plano de Deus centrado nele seja confiável pode-se esperar um verdadeiro encontro espiritual com Jesus Cristo. É por meio de interpretação disciplinada de uma Bíblia confiável que o Pai e o Filho, através do Espírito, fazem-se conhecidos a homens pecaminosos. Para tais encontros transformadores, os princípios e procedimentos hermenêuticos indicados aqui delimitam e protegem a estrada.


*Escrito por J. I. Packer

 

Traduzido por Carlos Felipi Massimo Faria


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