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Por qualquer um, mas não de qualquer jeito

Atualizado: 17 de jul. de 2019

Nelson Galvão*|

Em abril de 2013, no seu primeiro discurso ante o Comitê da Bíblia do Vaticano, o Papa Francisco afirmou que somente a Igreja é capaz de interpretar corretamente as Escrituras. Citando um texto do Concílio Vaticano II, a Constituição 'Dei Verbum', o pontífice advertiu:


"O Concílio lembrou com grande clareza: tudo o que está relacionado com a maneira de interpretar as Escrituras está, em última análise, sujeito ao julgamento da Igreja, que realiza o seu mandato divino e o ministério de preservar e interpretar a palavra de Deus".


A interpretação e a Reforma Protestante


Bem, desde a Reforma Protestante no séc. XVI a Igreja Protestante vem se posicionando absolutamente contra tal imposição da Igreja Católica. Os reformadores afirmaram em alto e bom som que SIM! Sim, a Palavra de Deus, pode ser interpretada corretamente por qualquer pessoa regenerada. Lutero se opôs veementemente contra a tradição eclesiástica e cria que somente a Bíblia poderia definir os dogmas. Em 1521, diante da Dieta de Worms, convocada pelo imperador alemão Carlos V, Lutero se recusou a retratar-se e afirmou:


"A menos que eu seja convencido pelas Escrituras e pela razão pura e já que não aceito a autoridade do papa e dos concílios, pois eles se contradizem mutuamente, minha consciência é cativa da Palavra de Deus. Eu não posso e não vou me retratar de nada, pois não é seguro nem certo ir contra a consciência. Deus me ajude. Amém". (Bettenson, 2001: 304)


Calvino também se posicionou contrário à imposição da Igreja sobre a interpretação da Bíblia. Em suas Institutas ele afirma:


“Entre a maioria, entretanto, tem prevalecido o erro perniciosíssimo de que o valor que assiste à Escritura é apenas até onde os alvitres da Igreja concedem. Como se de fato a eterna e inviolável verdade de Deus se apoiasse no arbítrio dos homens!” (Calvino, 1984, Vol I: 82)


Faltaria aqui espaço para mencionar outros importantes reformadores que também afirmaram veementemente a autoridade máxima das Escrituras em detrimento da imposição hermenêutica da Igreja.


O que é mesmo “livre interpretação das Escrituras”?


Todavia, a livre interpretação das Escrituras tem sido mal compreendida. É muito comum sermões que absolutamente desconsideram o sentido do texto sagrado, a partir do seu contexto histórico-gramatical. Este é interpretado a partir da criatividade do pregador que assevera ter a liberdade de atribuir às Escrituras o sentido que mais considera conveniente.


Não é isso que significa o conceito de “livre interpretação das Escrituras”. Este conceito refere-se ao fato de que não existe autoridade que detenha o monopólio da intepretação bíblica. A autoridade é a própria Bíblia. A Bíblia interpreta a Bíblia e qualquer pessoa regenerada pode interpretá-la corretamente.


Por que as Escrituras precisam de interpretação?


Faz-se necessário considerar que as Escrituras possuem uma natureza divina e uma natureza humana (2 Pe 1.19-21). Divina porque é a Palavra de Deus para todos os homens, em todas as épocas e em todos os lugares.


Em relação ao elemento humano das Escrituras, existem enormes desafios para os intérpretes. A parte mais jovem das Escrituras data de 2000 anos atrás. Ela foi escrita em três línguas diferentes, em lugares que a maioria de nós nunca esteve, em uma cultura que o mundo Ocidental desconhece. É por isso que Zuck (2008) e Paul Ricoeur (in Osborne: 2009) chamam essas dificuldades que se colocam diante da tarefa da interpretação de “abismos”.


Ao que parece a denominação “abismos” é inadequada, porque denota intransponibilidade e não é esse o caso. Dessa forma, a sugestão de Osborne (2008) parece ser mais pertinente: “distâncias”.


Assim, acredito na possibilidade da transposição dessas distâncias de tempo, lugar, cultura, língua. Contudo essa tarefa não pode ser feita de qualquer jeito. Ela demanda um extenso estudo espiritual, cuidadoso esforço e profunda dedicação.


É aí que vem um grande problema: nem todos os líderes estão dispostos a fazer esse estudo! Uns por se acharem incapazes, outros por mera preguiça intelectual, outros ainda, por acreditar que o estudo não é uma tarefa espiritual.


Atrocidades na intepretação da Bíblia


Em todo caso, diante da falta de estudo ao interpretar as Escrituras, têm-se acarretado verdadeiras atrocidades em relação à Palavra de Deus, atribuindo ao texto Sagrado o que este nunca disse.


Alguns erros são muito comuns ao se interpretar as Escrituras. Entre estes estão: alegorização, subjetivização e a espiritualização. Gostaria de me deter especialmente no segundo erro, a subjetivização.


O método de interpretação das Escrituras conhecido como subjetivização foi influenciado pela filosofia existencialista de Martin Heidegger (1889-1976) e desenvolvido pelo teólogo alemão Bultmann (1884-1976), o expoente da Escola de Intepretação conhecido como Nova Hermenêutica.


De acordo com esse método, o sentido do texto sagrado é o seu significado para o leitor de hoje, cidadão do séc. XXI, e não a intenção do autor, ou o que o texto falou aos seus leitores originais. Assim, o que mais se houve é: “esse texto significa isso pra mim”. E se esse significado não estiver de acordo com o significado que outra pessoa atribuiu ao texto, não tem problema, porque o que importa é o que o texto significa para cada um!


Embora a maioria das pessoas no Brasil não conheçam esses nomes, muitos têm inadvertidamente usado seus métodos de interpretação.


Assim, aquele que prega no texto em que José é lançado pelos seus irmãos no poço (Gn 37), dirige-se aos seus ouvintes e pergunta: “Que poço da vida você se encontra?”. Ou aquele que lê sobre a luta de Davi com Golias (1 Sm 17), e apressadamente se coloca no lugar de Davi e diz: “Vou vencer os gigantes (problemas) que tem se levantado contra mim”. Ou até mesmo aquele professor de curso de crescimento de igreja que usa o livro de Neemias para dar estratégias de crescimento, como a identificação dos “muros que precisam se reconstruídos da devocional”!!!!


Outro dia me encontrei em uma roda de colegas e o líder da reunião propôs a leitura de um texto das Escrituras. A partir da leitura cada um teve a chance de colocar suas impressões a respeito do que foi lido. As interpretações foram das mais variadas possíveis e, ao final, o líder da reunião concluiu: “estou feliz que cada um tenha tirado suas próprias lições do texto”.


O problema desse método é que ele nega a objetividade da verdade, e sujeita o texto à subjetividade da mente criativa do leitor. Para estes, o importante não é a mensagem real do texto, mas o sentido atribuído a ele.

Diante dessa atitude espúria de interpretação das Escrituras, precisamos afirmar e reafirmar que a Bíblia é a Palavra de Deus escrita para todos os homens, em todas as épocas e em todos os lugares. É exatamente por isso que ela precisa ser estudada com todo o zelo e cuidado.


Esse cuidado refere-se à busca do sentido do texto, buscando a intenção do autor e o que os leitores originais entenderam, por intermédio de um estudo do contexto histórico-gramatical, para então, e somente então, aplica-lo ao homem moderno. Afinal, o chamado do pregador é que este pregue a Palavra (2 Tm 4.2) e não as impressões que ele tenha a respeito.


Irmãos, qualquer pessoa pode interpretar as Escrituras, mas não de qualquer jeito, porque então não teremos a Palavra de Deus, mas a palavra do homem.


Nelson Galvão



Nelson é casado com Simone desde 1997 e eles têm um filho.

Atua como diretor pedagógico do ministério Pregue a Palavra, como coordenador dos grupos do Pregue a Palavra de Cuba e Moçambique e como professor de História da Igreja, da Escola de Pastores PIBA.

Ele é formado em História e Teologia, pós-graduado em Administração Escolar e mestre em Educação (PUC-SP). Atualmente cursa o programa de mestrado em Teologia do Novo Testamento, no Seminário Bíblico Palavra da Vida- Atibaia, SP.


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